O homem sem nome observou Lucien com um olhar calculista, refletindo sobre o quanto aquele garoto havia sido inconveniente. Em algum momento, ele próprio explicara para Lucien o que os usuários de magia negra eram capazes de fazer. Como podiam extrair for?a, vitalidade, memórias, até mesmo a essência da alma de alguém. Para sua sorte, o assassino que ele contratara era um desses usuários — e um dos melhores.
Ele sorriu. Finalmente, tudo faria sentido. A bússola de ouro n?o errava. A Lágrima de Aether estava ali, fundida à alma do moleque. Se a lágrima e ele eram um só, ent?o bastava despeda?á-lo para que ela prevalecesse.
O assassino, sempre silencioso, deslizou até Lucien. Seus olhos eram frios, sem qualquer emo??o. Ele n?o questionou a ordem, apenas ergueu as m?os sobre o garoto, preparando-se para o processo.
Lucien estremeceu. A simples aproxima??o daquele homem o fez sentir um frio profundo, como se sua própria existência estivesse sendo sugada. Ent?o, de repente, veio a dor.
Primeiro, foi como uma press?o esmagadora dentro de seu peito, como se algo estivesse tentando ser arrancado de dentro dele. Mas logo aquilo evoluiu para algo muito pior. Era uma sensa??o que desafiava qualquer dor física que ele já havia experimentado. Seu corpo queimava por dentro, enquanto sua mente era puxada em dire??es impossíveis. Ele tentou gritar, mas sua garganta travou.
O assassino também sentiu o impacto. A alma de Lucien resistia mais do que ele havia previsto. O garoto deveria ser apenas um ladr?o, um mero sobrevivente. Sua alma deveria ser imatura, fácil de despeda?ar. Mas n?o era. Havia algo errado.
Lucien, mesmo esmagado pela dor, percebeu. Algo dentro dele n?o queria ceder. N?o queria desaparecer. Ele n?o sabia o que estava acontecendo, mas se houvesse uma chance, por menor que fosse, de resistir, ele agarraria com todas as for?as.
O homem sem nome franziu a testa. Ele esperava que o processo fosse simples. Mas algo lhe dizia que as coisas n?o sairiam como planejado.
E ent?o, o inesperado aconteceu.
Lucien sentia como se cada peda?o de sua existência estivesse sendo rasgado, dilacerado, consumido por algo invisível. Sua vis?o se distorcia, o mundo ao seu redor oscilava entre a escurid?o e flashes de luz azul pálida. Sua mente tentava se agarrar a qualquer coisa — lembran?as de Lucy, da infancia, do cheiro de p?o quente que vez ou outra sentia ao passar pelas ruas da cidade. Mas tudo estava sendo arrancado.
O assassino manteve as m?os erguidas sobre Lucien, sua respira??o come?ando a falhar. A alma do garoto lutava. Era forte, bem mais forte do que deveria ser. Ele sentia como se estivesse tentando arrancar algo preso ao próprio tecido da realidade, como se a Lágrima e Lucien estivessem enredados em algo muito maior.
O homem sem nome observava tudo de perto, seus olhos analisando cada rea??o. A princípio, estava calmo, mas conforme os minutos se arrastavam, sua express?o tornou-se mais sombria.
— O que está acontecendo? — Ele perguntou, impaciente.
O assassino n?o respondeu imediatamente. Estava concentrado, for?ando a magia, puxando a alma do garoto em todas as dire??es possíveis. Ele nunca tinha falhado nesse tipo de trabalho antes. Mas desta vez…
Ele recuou por um breve segundo, os olhos arregalados. O que ele viu dentro da alma de Lucien o fez hesitar.
— Algo está errado. — Ele finalmente disse, a voz carregada de incredulidade.
O homem sem nome estreitou os olhos.
— Errado como?
O assassino passou a língua nos lábios, tentando recuperar o f?lego. Seu corpo inteiro tremia de um jeito que ele n?o compreendia. Ele nunca havia experimentado resistência de uma alma t?o jovem. Mas Lucien… n?o era normal.
— A Lágrima n?o está apenas dentro dele. Ela é parte dele. — O assassino olhou para seu contratante, suas pupilas dilatadas. — Separá-los n?o é só difícil… é quase impossível.
O silêncio tomou conta da sala, interrompido apenas pela respira??o ofegante de Lucien e pelo leve tilintar das correntes que o prendiam.
O homem sem nome se inclinou para frente, analisando o garoto com um brilho novo nos olhos.
— Interessante…
Lucien queria falar, queria gritar, queria dizer qualquer coisa, mas sua mente estava fragmentada. Ele sentia que se dissesse algo errado, daria ao homem sem nome exatamente o que ele queria.
E ent?o veio a pior parte.
O assassino, for?ado a tentar novamente, reuniu sua magia negra uma vez mais. Se uma separa??o delicada n?o funcionava, talvez um método mais agressivo…
Lucien se contorceu, e dessa vez, a dor foi t?o intensa que sua vis?o ficou branca. Ele n?o conseguia mais ver a sala, o espelho, ou os olhos insanos do homem sem nome. Só havia um vazio infinito, um mar de dor e angústia.
Mas ali, naquele vazio, algo respondeu.
Uma presen?a.
Familiar.
Fria e serena, mas ao mesmo tempo colossal.
A Lágrima de Aether n?o queria ser removida.
O assassino foi jogado para trás de repente, um grito escapando de sua boca. Seu corpo bateu contra a parede, e ele caiu de joelhos, ofegante, sangue escorrendo de seu nariz e ouvidos.
O homem sem nome olhou, alarmado.
— O que foi isso?!
O assassino tremeu. Pela primeira vez em anos, sentiu medo. Era como se uma dor tivesse afetado sua própria alma, uma dor que o garoto devia sentir, n?o ele mesmo…
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Lucien estava pálido, sua cabe?a pendendo para o lado, quase inconsciente. Mas algo nele… algo nele havia mudado.
O homem sem nome sorriu, lentamente.
— Ah… ent?o é assim que é.
Ele se abaixou ao lado de Lucien e sussurrou, quase em tom de reverência:
— Parece que alma dele já está desperta…
Lucien tentou manter os olhos abertos, mas sua consciência deslizava para longe. Seu corpo, sua alma, tudo doía. Mas no fundo, algo come?ava a se formar.
O homem sem nome observava Lucien com um brilho curioso nos olhos. Ele levou uma m?o ao queixo, analisando o garoto com renovado interesse. N?o havia dúvidas: a alma de Lucien havia despertado.
Ele sabia que isso aconteceria cedo ou tarde—ele já havia visto acontecer antes. O despertar de uma alma podia ser provocado por inúmeros fatores, mas em casos como o de Lucien, onde n?o havia treinamento nem um ambiente propício para o desenvolvimento natural, algo drástico precisava acontecer. E esse “algo” foi justamente a tortura. O corpo do garoto havia sido empurrado ao limite absoluto, sua mente reduzida a puro desespero, e seu espírito, antes adormecido, for?ado a reagir para sobreviver.
O homem sorriu para si mesmo. N?o era a primeira vez que via isso. Alguns despertavam por fúria, outros por medo, alguns até por pura necessidade de proteger alguém. No caso de Lucien, tudo se misturava: dor, angústia, pavor... Mas havia também a influência da Lágrima de Aether.
A Lágrima...
O homem voltou a olhar para o garoto, agora desacordado na cadeira, a respira??o irregular, os músculos tensionados mesmo inconscientemente. Ele ainda se lembrava da express?o de Lucien quando percebeu que a bússola o apontava como o portador da Lágrima. O garoto genuinamente acreditava que n?o a possuía, isso era óbvio, nem mesmo ele tinha o entendimento que a lágrima havia se fundido com a alma do garoto.
Uma ideia fez sua mente fervilhar de possibilidades. Seria esse o verdadeiro propósito do artefato? Fundir-se àquele que a tomasse para si? N?o... Se fosse assim, Elias n?o teria sido capaz de mantê-la selada por tanto tempo. Havia algo mais. Talvez a Lágrima apenas tenha escolhido Lucien— Por isso Elias n?o podia usá-la. E se o despertar da alma do garoto houvesse fortalecido esse vínculo?
Essa possibilidade o incomodou. Ele n?o poderia permitir que o garoto assimilasse completamente a Lágrima. N?o agora. Quanto mais tempo passasse, mais a fus?o entre os dois se aprofundaria, tornando impossível a extra??o sem consequências irreversíveis.
Ele lan?ou um olhar para o assassino, que se recuperava. Aquele golpe que o lan?ara para trás... O que tinha sido? Um instinto de sobrevivência da alma de Lucien? Ou a resistência da própria Lágrima?
N?o importava.
O assassino era altamente qualificado, e Lucien era um mago recém desperto. Ele n?o sabia o que havia se revelado dentro do garoto—magia negra? Elementar? Magia da alma? Era impossível determinar de imediato. Mas nada disso alterava seu plano. O processo deveria ser finalizado agora, antes que a alma do garoto se moldasse completamente e tomasse forma.
Ele deu um passo à frente, seus olhos agora mais frios do que nunca.
— O suficiente de surpresas por hoje. Acabe com isso. — Ordenou ao assassino.
O homem mascarado se adiantou, ainda massageando o bra?o que havia sido atingido pela for?a misteriosa. Com um aceno de cabe?a, aceitou a ordem.
A Lágrima seria extraída.
Lucien n?o tinha escolha.
A manh? era dourada, o sol entrava suavemente pelas janelas da casa espa?osa, iluminando o interior com um brilho quente e acolhedor. O aroma de p?o fresco e café recém-passado pairava no ar, misturando-se com o leve cheiro de madeira polida dos móveis bem-cuidados.
Lucien abriu os olhos e se espregui?ou sobre o colch?o macio. Seu quarto era grande, maior do que qualquer outro que já tivera em sua vida. As paredes eram adornadas com p?steres de aventuras fantásticas e feitos heroicos, e na escrivaninha ao lado da cama, livros bem encadernados estavam empilhados ordenadamente. A luz do sol dan?ava pelo ch?o de madeira, dando ao espa?o um ar confortável e familiar.
Um sorriso se formou em seu rosto antes mesmo de ele entender o porquê. Algo dentro dele simplesmente sabia que aquele era um dia bom.
— Lucien, venha tomar café! — a voz calorosa de sua m?e ecoou pela casa.
O cora??o do garoto aqueceu ao ouvi-la. Era uma voz que sempre lhe trazia seguran?a, conforto… amor.
Levantou-se rapidamente, vestindo uma camisa limpa e um casaco elegante antes de sair do quarto. O corredor era largo, decorado com quadros de família. Fotografias suas e de sua irm?, Lucy, ao lado de seus pais. Em todas elas, pareciam felizes.
Ao chegar à sala de jantar, a vis?o diante dele era de um lar perfeito. Uma grande mesa de madeira estava posta com uma fartura de alimentos que ele nunca imaginaria em outra realidade. P?es, frutas frescas, queijos, geleias, leite morno. Sua m?e, Perséfone, estava servindo o café, vestindo um vestido azul claro, com um sorriso gentil no rosto.
Seu pai, um homem alto e de tra?os firmes, lia um jornal enquanto bebia seu café. Ele usava roupas elegantes, demonstrando o sucesso e estabilidade que proporcionava à família.
Lucy, sentada ao lado da m?e, balan?ava as pernas no ar, impaciente. Seus olhos brilhavam de felicidade enquanto pegava um peda?o de p?o amanteigado e mordia com prazer.
Lucien sentou-se à mesa, sentindo uma paz avassaladora tomar conta de si.
— Dormiu bem, querido? — sua m?e perguntou, colocando uma xícara de chá à sua frente.
Ele assentiu, ainda saboreando a tranquilidade do momento.
— Sim… Foi um dos melhores sonos que já tive.
Seu pai baixou o jornal e lhe lan?ou um olhar orgulhoso.
— Isso é bom. Você tem se esfor?ado bastante ultimamente. Merece um pouco de descanso.
Lucien n?o sabia exatamente sobre o que o pai falava, mas sentiu-se feliz por ouvir isso.
Lucy, com um sorriso travesso, se inclinou em sua dire??o.
— Vamos para a escola juntos hoje? Quero te mostrar algo que eu e meus amigos fizemos no jardim!
A escola… Amigos…
A imagem surgiu em sua mente com facilidade. Ele e Lucy, vestidos com uniformes limpos e bem passados, correndo pelas ruas ensolaradas até chegarem a um belo prédio de pedra branca, cercado por árvores de folhas douradas. Ele se lembrou das risadas nos corredores, das brincadeiras no pátio, das conversas despreocupadas sobre o futuro…
— Claro, vamos juntos. — Respondeu, sentindo o cora??o aquecido.
A família continuou o café da manh?, trocando conversas leves e risadas. Seu pai contava sobre uma viagem que faria a trabalho, sua m?e falava sobre um evento beneficente que organizaria. Lucy, animada, falava sobre um festival na escola.
Tudo era t?o… perfeito.
N?o havia fome.
N?o havia medo.
N?o havia fugas desesperadas pelas ruas escuras.
Apenas um lar. Seguran?a. Amor.
Lucien se permitiu acreditar que aquela era a sua vida.
E era uma vida feliz.
— O que estou pensando? é óbvio que essa é a minha vida, sempre foi assim, e sempre vai ser assim. — murmurou ele, para si mesmo.
Lucien olhou ao redor da mesa mais uma vez, gravando cada detalhe. O riso de Lucy, o olhar gentil de sua m?e, a presen?a firme de seu pai. O aroma de comida quente preenchia seus sentidos, trazendo uma sensa??o de conforto absoluto.
Ent?o, por que ele sentia aquela dor no peito?
Era algo sutil, uma pontada inc?moda que surgia toda vez que ele respirava fundo. Como se algo dentro dele estivesse sendo rasgado e transformado aos peda?os, tentando gritar para que ele prestasse aten??o.
Mas o quê?
Ele olhou para suas m?os, para o p?o quente que segurava. Tudo estava certo. Tudo estava perfeito.
Talvez fosse só um pensamento passageiro, um medo bobo
de que aquilo fosse bom demais para ser verdade.
Ele balan?ou a cabe?a, afastando a sensa??o inc?moda.
N?o importava.
Ele estava feliz agora.
Estava com sua família.