Mais uma vez, uma notícia num jornal local despertou a minha curiosidade. Esta reportava uma série de estranhos acidentes de automóvel que andavam a ocorrer na cidade de Braga. Todos eles aconteciam próximo do local onde os carros ficavam estacionados durante a noite e mostravam sinais de sabotagem, geralmente trav?es cortados. As mortes já superavam uma dezena. Segundo a notícia, a polícia acreditava que se tratava de um ou vários vandalos em série, mas ainda n?o tinha encontrado qualquer pista, indício ou testemunha que ajudasse a identificá-los.
Noutros tempos, teria prontamente concordado com as autoridades, mas, depois de tudo o que vira nos meses anteriores, perguntei-me se a causa n?o seria outra, algo associado ao outro mundo que eu havia descoberto. Como tal, uma noite em que saí tarde do trabalho, decidi fazer uma ronda pela cidade.
A pé, percorri todas a ruas em que carros costumavam ficar estacionados durante a noite, atento a qualquer movimento debaixo deles. Durante a primeira hora, n?o vi mais do que um ou outro animal vadio. Contudo, perto da meia noite, avistei um estranho vulto negro debaixo de um Ford Fiesta. Se eu n?o tivesse visto criaturas bizarras antes, podia ter pensado que se tratava de mais um gato, mas havia algo na forma daquela sombra que n?o parecia animal.
Aproximei-me. Lentamente, baixei-me, e, ligando rapidamente a lanterna, espreitei para baixo do carro. O que encontrei, realmente, n?o foi um gato, mas sim um trasgo, como os que eu ajudara a libertar da casa dos Cerqueira. Estava, claramente, a tentar romper parte das tubagens e cablagens na parte de baixo do carro.
Alarmado, o ser tentou fugir. Agarrei-o por um bra?o. Se o capturasse, talvez pudesse encontrar alguém que conseguisse comunicar com ele e perceber porque estava a fazer aquilo. Contudo, o trasgo prontamente me mordeu a m?o, obrigando-me a largá-lo. Ainda corri atrás dele, mas, usando os seus quatro membros, era muito mais rápido do que eu. Perdi-o, por fim, quando ele subiu a parede do terreno adjacente a uma das torres medievais da cidade. Para além de ser demasiado alta para eu escalar, tratava-se de propriedade privada habitada, que eu n?o me atrevia a invadir.
O encontro, contudo, n?o foi infrutífero. Quando agarrei o bra?o da criatura, apercebi-me que este tinha uma marca constituída por um círculo com um C invertido gravado na pele. Decidi, ent?o, ir até ao Bar das Fadas procurar Alice na esperan?a que ela soubesse do que se tratava e isso me desse alguma pista sobre a origem e objetivos daquele trasgo.
Como esperava, e como em quase todas as minhas visitas ao Bar das Fadas, encontrei Alice sentada ao balc?o. Sentei-me ao lado dela. Depois da nossa aventura na casa dos Cerqueira, ela já n?o parecia t?o ressentida com o nosso primeiro encontro, pelo que n?o tive dificuldade em iniciar a conversa. Depois dos cumprimentos iniciais, falei-lhe dos acidentes, das mortes, da minha vigília e do meu encontro incriminatório com o trasgo.
- Já ouvi falar desses acidentes - disse ela. - Quase todos os carros bateram em sítios habitados por algumas das nossas ra?as mais pequenas. Aquele que derrubou a parede do Palácio dos Biscainhos destruiu uma comunidade inteira de fadas que fizeram casa no interior oco. A Marta, a fada que foi connosco à quinta dos Cerqueira, perdeu a família toda. Que tenha sido um trasgo a causar os acidentes pode ser uma revela??o importante.
Fiquei em silêncio durante um instante, tentando digerir o que acabara de ouvir. As mortes podiam ter sido apenas danos colaterais de alguém a tentar disfar?ar atentados contra as fadas como acidentes. Contudo, isso n?o reduzia a minha vontade de encontrar o responsável. Antes pelo contrário.
Contei, ent?o, a Alice sobre marca que vi no bra?o do trasgo. Ela olhou para mim com uma express?o grave.
- Eu já vi essa marca antes - disse ela. - Nos trasgos que libertámos da quinta dos Cerqueira.
Nesse momento, fiquei sem pinga de sangue. Uma, talvez mais, das criaturas cuja liberta??o eu promovera e ajudara, podia ser responsável por mais de uma dezena de mortes. Era difícil n?o sentir que o sangue deles estava nas minhas m?os.
- Tens a certeza? - perguntei, procurando uma brecha por onde escapar à minha culpa.
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Ela apenas acenou com a cabe?a, em silêncio.
Levantei-me imediatamente e voltei para as ruas de Braga, mais decidido do que nunca a descobrir a raz?o para todas aquelas mortes.
Dirigi-me à rua onde encontrara o trasgo. Com sorte, tinha-o interrompido antes de ele acabar a sua sabotagem e voltaria para terminar o trabalho.
Esperei, imóvel, sob a sombra de uma árvore, na esperan?a que a escurid?o me escondesse. Estive ali quase uma hora, antes de o trasgo voltar, saído de uma quelha próxima. Assumi que era o mesmo, pois dirigiu-se para o mesmo carro. Desta vez, n?o interrompi o seu trabalho. Queria que terminasse para segui-lo e ver para onde iria depois. Havia ali algo mais, tinha de haver, e ia descobrir o que era, ou a culpa seria minha… Mais tarde deixaria no para-brisas uma mensagem a avisar o condutor do carro.
A criatura nem cinco minutos esteve debaixo do veículo. Correu para a quelha de onde emergira e, desta vez, consegui ir atrás dele. Estava preocupado em n?o perdê-lo, como da última vez, felizmente, a persegui??o n?o foi longa. Vi-o a subir a parede traseira de uma casa abandonada nas Carvalheiras - um largo situado no outro extremo da quelha - e a desaparecer na escurid?o atrás das grades que delimitavam o jardim, construído sobre a garagem. Conhecia bem aquela casa, já a tinha visitado com o grupo de explora??o urbana, pelo que sabia como entrar. N?o tinha a agilidade nem as garras do trasgo, porém, subindo para cima de uma caixa de eletricidade, consegui alcan?ar um espa?o entre as grades largo o suficiente para eu passar.
Como era habitual em casas abandonadas há muito tempo, esta havia sido vandalizada. A porta traseira tinha sido arrombada. Entrei. Peguei na minha lanterna, mas n?o me atrevi a acendê-la. N?o queria assustar quem ou o que lá estivesse, pelo menos n?o antes de eu descobrir o que se passava. Ainda assim, a luz da lua, das estrelas e até da ilumina??o pública que entrava pelas janelas partidas iluminava o interior o suficiente para eu ver o que me circundava.
O ch?o do vestíbulo estava pejado de folhas, provavelmente trazidas pelo vento através da porta. Felizmente, também estava coberto de pó, no qual se viam, distintamente, várias pequenas pegadas, que assumi serem de trasgo. Segui-as até à escadaria que levava ao piso superior, ignorando duas portas abertas para salas que, pelo pouco e empoeirado mobiliário que ainda continham, eram de estar e de jantar.
As escadas de madeira rangentes levaram-me até ao corredor do andar superior, onde se alinhavam várias portas abertas ou arrombadas. A luz que saía destas era suficiente para eu ver o que me rodeava. Como no andar de baixo, o corredor estava coberto de pó, e neste continuavam a ver-se as pegadas de trasgo. Segui-as até um dos quartos.
Mal cheguei à porta, vi pequenos vultos, certamente trasgos, a correr e desaparecer pela porta que levava à varanda. Esta, porém, enquadrava uma forma maior, talvez até mais alta do que eu. N?o parecia particularmente incomodada com a minha presen?a, pois n?o moveu um só músculo quando entrei no quarto.
Um capuz e uma capa cobriam-lhe todo o corpo e, com a escassa ilumina??o, era impossível eu conseguir ver o que se encontrava debaixo.
- Quem é você? - perguntei. - O que pretende?
Só podia ser este vulto quem controlava os trasgos, pelo que era altura de eu obter algumas respostas sobre os acidentes e as mortes.
- Vai-te embora - respondeu a criatura com uma voz feminina e rouca. - Isto n?o tem nada a ver contigo nem com os da tua ra?a. Esquece tudo o que viste.
- Mas... - comecei eu, mas ela virou-me costas e avan?ou para a varanda.
Corri atrás dela, disposto a lutar se fosse preciso, para obter respostas. Contudo, mal chegou ao exterior, ela come?ou a pairar. A surpresa fez-me hesitar momentaneamente, tempo suficiente para a criatura se elevar no céu noturno, bem acima da casa. Vi-a, ent?o, voar em dire??o a oeste, desaparecendo pouco depois detrás dos prédios que ocultavam o horizonte.
Frustrado, deixei a casa e encaminhei-me de novo para o Bar das Fadas. Talvez Alice soubesse quem ou o que era aquele ser encapu?ado.
Ela ainda lá se encontrava, sentada ao balc?o, no mesmo sítio. Sentei-me a seu lado e, antes de ela ter tempo de dizer alguma coisa, contei-lhe o que tinha acabado de descobrir. Quando lhe falei da figura encapu?ada e de como esta levantara voo, uma express?o aterrorizada apareceu na sua face.
- Bruxas da Noite - sussurrou ela, como se tivesse medo de dizer o nome em voz alta.
- Quem s?o as Bruxas da Noite? - perguntei, alarmado com a sua rea??o.
- A lenda das Bruxas da Noite é muito antiga. Diz-se que s?o criaturas misteriosas que atacam algumas das nossas ra?as. Como é normal nestas coisas, há várias histórias de avistamentos, se bem que ultimamente tem-se ouvido mais. Nunca lhes dei muita importancia. Mas, agora, com o que me contaste...
Continuámos a conversar sobre as Bruxas da Noite durante mais algum tempo. Infelizmente, as histórias que ela conhecia n?o eram muito úteis. Frequentemente, contrariavam-se umas às outras. Mas é essa a natureza das lendas.
Deixei o Bar das Fadas decidido a encontrar e fazer o que pudesse para parar as Bruxas da Noite. Quando cheguei a casa, a minha mulher já tinha adormecido. Eu ligara-lhe a dizer que ia trabalhar até tarde. N?o me juntei a ela de imediato. Sentei-me à secretária com o diário que havia encontrado, procurando por todas as entradas sobre bruxas. As minhas próximas expedi??es iam centrar-se nelas.